Kant
O primeiro tema da Seção de Textos publicados do Acervo Loparic contém os escritos que dediquei a Kant. Apresentam-se na ordem cronológica de publicação e estão divididos em grupos temáticos, cujos títulos colocarão em evidência a temática central abordada.
Em vários sentidos, Kant é referência e inspiração central de minha produção filosófica, principalmente por ter introduzido uma revolução na filosofia, modificando de maneira definitiva o modo de pensar dessa disciplina. Em Kant, a razão teórica humana não é mais a faculdade de contemplação maravilhada da estrutura fixa do mundo eterno – no sentido de Platão e Aristóteles – ou de uma criação divina ex nihilo – no sentido da teologia e da escolástica cristãs –, mas a fonte de um sistema unificado de problemas, gerados pelos princípios lógicos inatos, aos quais a natureza deve ser forçada, pelos experimentos, a dar respostas, permitindo, assim, a elaboração de um sistema de conhecimentos racionais do mundo.
Esse passo revolucionário exigiu outros não menos radicais e inovadores: o estabelecimento de bases de solução e a explicitação de procedimentos de solução de todos os problemas da razão teórica, de modo que nenhum deles permanecesse sem resposta. A primeira tarefa foi resolvida por Kant pela resposta à principal pergunta da primeira Crítica: como são possíveis os juízos sintéticos teóricos a priori? Com isso se entende: como os juízos desse tipo, filosóficos, matemáticos ou físicos, podem ter validade objetiva, isto é, podem ser verdadeiros ou falsos no domínio de dados sensíveis cognitivos (experiência possível)? A resposta de Kant encontra-se na sua lógica transcendental, ciência inteiramente nova, nunca antes idealizada por ninguém, que produziu um paradigm shift na semântica filosófica, oferecendo uma teoria a priori inédita da referência dos conceitos a priori e das condições de verdade dos juízos sintéticos teóricos a priori. A sintaxe permanecia a mesma que a da lógica aristotélica. Na solução da segunda tarefa, relativa ao método de prova, Kant se valeu do método combinado de análise e síntese usado tradicionalmente pelos geômetras gregos e já previamente adaptado aos juízos da filosofia por Descartes.
Na metafísica tradicional, três problemas ocupavam o primeiro plano: a existência de Deus, a liberdade e a imortalidade da alma. Para começar, Kant mostrou que, pelos critérios da sua semântica a priori (transcendental), todos os três são insolúveis no domínio do discurso teórico. Os conceitos de Deus, liberdade e imortalidade não têm referência no domínio de experiência possível; os juízos teóricos determinantes, nos quais esses conceitos ocorrem, não são, portanto, possíveis e, em decorrência disso, não podem ser demonstrados nem refutados. Mesmo assim, Kant preservou essas ideias, atribuindo-lhes uma nova função: a de ficções heurísticas, úteis e mesmo indispensáveis na condução da pesquisa empírica. Num segundo passo, Kant tratou de resolver os três problemas num outro domínio de dados, o estudado pela antropologia moral. Na fase tardia, ele reviu essa posição, preservou a tese da cognoscibilidade da liberdade, mas rearticulou a pergunta pela existência de Deus e pela imortalidade da alma como regras a priori práticas para a vida moral.
Tendo eliminado, ou radicalmente modificado, os problemas da metafísica teórica tradicional, Kant dedicou-se aos problemas da razão em outros campos da filosofia, tais como moral, ética, estética, direito, política e história, perguntando por condições de solubilidade de novos tipos de juízos a priori e pelos métodos de prova respectivos. Essa revolução contínua do pensamento filosófico levou Kant a se colocar a seguinte pergunta: como são possíveis os juízos sintéticos a priori em geral? As suas respostas seguiam o mesmo princípio que o adotado na lógica transcendental, isto é, na filosofia transcendental da primeira Crítica: a solubilidade, pelo menos em princípio, é garantida pela sensificação dos conceitos e dos juízos. O conjunto dessas respostas constitui a filosofia transcendental ou semântica a priori generalizada de Kant, isto é, sua teoria da referência dos conceitos e de validade de juízos a priori outros que não apenas os teóricos e aplicados aos domínios de dados não cognitivos (sentimento de respeito pela lei moral, entusiasmo pela ideia do direito etc.). Dessa forma, Kant introduziu, silenciosamente, outro paradigm shift na filosofia: ao mesmo tempo que eliminou da filosofia, como vazia de sentido e significado, a linguagem da metafísica, franqueou a priori o uso de uma variedade de discursos morais, estéticos, religiosos, simbólicos, cuja sintaxe permaneceu, é verdade, não explicitada, mas cuja validade objetiva era assegurada por regras próprias e que, por isso, eram irredutíveis uns aos outros. Nesse quadro, Kant abriu um campo inteiramente novo de exploração de linguagens e de modos de teorização e simbolização, não só na filosofia, mas também na ciência, artes, religião e outras áreas da vida cultural. A filosofia da linguagem contemporânea é mais um desenvolvimento da herança kantiana.
Kant acabou caracterizando o campo da filosofia por três conjuntos de problemas que decorrem dos princípios lógicos da razão: o que posso conhecer? o que devo fazer? e o que me é permitido esperar? Para surpresa e desaprovação de muitos comentadores, Kant remeteu esses três novos problemas da filosofia ao campo da antropologia, disciplina baseada na observação da natureza humana, visando a estudar as faculdades humanas teóricas, práticas e de sensibilidade, e os princípios efetivos de sua modificação. De fato, paralelamente aos trabalhos iniciados em 1792, sobre as regras da filosofia transcendental (partindo da pergunta de ordem semântica: sobre qual fundamento repousa a relação com o objeto daquilo que, em nós, chamamos de representação?), Kant começou a desenvolver, sob o título de Antropologia, estudos factuais sobre as capacidades dos seres humanos de executarem as operações exigidas para a aplicação das regras da filosofia transcendental. Na publicação da Antropologia de um ponto de vista pragmático, em 1798, Kant agrupou seus estudos sobre as faculdades operatórias humanas, tanto as intelectuais com as da sensibilidade, na primeira parte dessa obra e os resumiu na pergunta: o que é o homem? Ele reservou a segunda parte para a exposição dos resultados relativos ao uso dessas faculdades, resumindo-os numa nova pergunta: o que o homem, como agente livre, faz ou pode e deve fazer de si mesmo? A resposta kantiana é dada pela sua teoria da história do gênero humano, que consiste no processo de cultivo das faculdades, de civilização dos relacionamentos sociais e de moralização – vinculação da vontade pelas leis da moral e da ética. Assim, a semântica a priori foi completada por uma pragmática a priori. No final da vida, no Opus postumum, Kant ainda tentou articular o problema da história na concepção da “auto posicionamento” do homem, pensado na ideia reguladora de um agente que executa as leis teórico-práticas e moral-práticas, as primeiras coordenadas pela ideia reguladora do mundo e as segundas, pela ideia reguladora de Deus. Empenhou-se também em produzir uma física a priori e, quem sabe, uma química a priori, que não repousassem apenas nos princípios metafísicos da ciência da natureza. Nos dois casos, foi vencido pela idade, deixando a sua revolução inacabada. Seguiu-se, como sabemos, uma reação conservadora, inicialmente teologizante, do idealismo alemão, e, depois, incontrolavelmente especulativa, como a de Schopenhauer e Nietzsche.
Esse Kant revolucionário, incansável perguntador que obriga a filosofia a se reinventar constantemente, ressurgiu no neokantismo e serviu também a mim de referência central. Não como pensador de verdades eternas, mas como formulador e organizador recorrente de perguntas filosóficas. Não como construtor de sistemas, mas como guia cada vez mais preciso na exploração de problemas em campos da filosofia cada vez mais amplos e previamente desconhecidos. Não como codificador de uma nova linguagem unificada da filosofia, mas como libertador dos poderes do dizer humano. No primeiro caso, Kant permitiu, em particular, aproximar a sua teoria da razão perguntadora das teses de Descartes sobre as regras para a direção do espírito na busca da verdade (resolução de problemas de ordem e de medida). No segundo caso, ele autorizou o diálogo entre a sua teoria da racionalidade filosófica e científica, especialmente a sua semântica, e as posições de dois filósofos que figuram como principais representantes da epistemologia heurística (teórica da filosofia e da ciência como atividade de resolução de problemas) e da semântica na atualidade – Carnap e Kuhn. O neopositivismo de Carnap é de fato um desenvolvimento do criticismo kantiano mediante o uso da lógica formal contemporânea e Kuhn se dizia ele próprio kantiano pós-darwiniano. A sua teoria das revoluções científicas (além de políticas, filosóficas e teológicas) pode ser inserida no mesmo quadro kantiano de progresso dos saberes humanos por revoluções sucessivas. Mas não apenas isso. Kant abriu um horizonte filosófico no qual era legítimo ocupar-se de problemas filosóficos a priori que ele próprio nunca formulou como tais, por exemplo, os problemas do sentido do ser e do existir humano de Heidegger, não menos revolucionários que os de Kant. Freud inscreveu a psicanálise na continuação da realização do projeto crítico de Kant. Eu mesmo tentei estabelecer pontes entre as teses do idealismo transcendental e o problema de contato com a realidade, central na teoria clínica de Winnicott. Por fim, os múltiplos dizeres kantianos facilitaram, principalmente, minha compreensão da linguagem de Heidegger, que operava com conceitos a priori desconhecidos de Kant e, por isso, exigiam domínios factuais de interpretação de caráter igualmente não experienciado. Constatei que a linguagem de Freud, bem como a de Winnicott, podiam ser analisadas nessa mesma perspectiva.
Pensando no que fiz em diferentes campos da filosofia e da ciência nesses 40 anos, pode-se dizer, no essencial, que nunca deixei de ser um kantiano, o mesmo que, aos 17 anos, lendo Os prolegômenos, tendo perdido a certeza nas provas tomistas da existência de Deus e não encontrando novas, foi forçado a tornar-se um constante perguntador. Anos mais tarde, pude reavaliar o que estava acontecendo comigo ao ler a frase de Heidegger: “Pois o perguntar é a piedade do pensamento”.
Z. Loparic