Carnap
Carnap
Nos meus trabalhos, usei Carnap menos pelos seus resultados – de fato, seu projeto de linguagem unitária da ciência dotada de procedimentos de decisão não vingou – do que para estabelecer pontes entre posições filosóficas que me pareciam aparentadas, mas que, à primeira vista, eram incomparáveis e mesmo incompatíveis uma com a outra.
Em 1928, Carnap subscreveu a “tese orgulhosa da onipotência da ciência racional” ao afirmar que “não existe nenhuma pergunta [bem formulada] cuja resposta seja em princípio irrespondível pela ciência”. O próprio Carnap estabeleceu conexão entre essa tese do positivismo lógico e as principais correntes da tradição filosófica: “A nossa tese de decidibilidade de todas as questões concorda com o positivismo bem como com o idealismo”. As duas grandes tradições filosóficas do Ocidente coincidem em dizer, esse é o entendimento de Carnap, que um problema não tem sentido ou é possível demonstrar que é solúvel ao menos em princípio. O sujeito transcendental de Kant pode ser considerado um ilustre precursor do sujeito carnapiano, cujo input são as vivências que lhe proporcionamos como dados primitivos e cujo output hão de ser as construções lógicas de objetos. A linguagem constitucional do Aufbau pode ser vista, ainda segundo Carnap, como uma plataforma para regras de operação de procedimentos construtivos, aplicáveis por qualquer um, seja ele o sujeito transcendental de Kant ou uma máquina de Turing.
Em consequência direta da “tese orgulhosa”, o mundo elaborado pelo sujeito constitutivo de Carnap torna-se uma charada (científica), um imenso puzzle a decifrar. Estamos entrando na área explorada por Kuhn, ainda que em termos diferentes dos de Carnap. Este sabia dessa proximidade teórica, pois foi ele quem publicou, em 1962 e em 1970 respectivamente, as primeiras duas versões do Estrutura das revoluções científicas de Kuhn.
Ainda faltava a conexão com Heidegger para conectar os pontos centrais do meu quadro de interesses. No Posfácio da minha tese de doutorado, de 1982, se lê: “Minha interpretação de Kant sugere várias novas linhas de pesquisa. Uma delas ascende na direção de teóricos mais antigos da resolução científica de problemas e conduz inevitavelmente a Descartes, o primeiro grande filósofo a ter-se colocado a tarefa de produzir uma teoria geral dos métodos de descoberta. Outra linha traça um percurso descendente, seguindo as peripécias da filosofia transcendental. Para qualquer pesquisa séria nessa direção – e isso só é surpreendente quando se negligenciam as reais questões envolvidas –, o estudo do Aufbau de Carnap é simplesmente obrigatório. Mas há também muito a aprender, tanto sobre o modo transcendental de pensar como sobre a ontologia da resolução humana de problemas, pelo exame do Sein und Zeit de Heidegger. Pode parecer bastante curioso, de fato, que se ponha lado a lado, como pertencentes à mesma linhagem, duas obras que são correntemente tratadas, com a plena aprovação de respeitados autores, como não tendo em comum senão o período de sua publicação. E, no entanto, a teoria carnapiana dos sistemas construcionais e a análise heideggeriana do ser-o-aí ocupam dois extremos no mesmo espaço teórico aberto pela filosofia transcendental de Kant. São como duas variações em estilos inteiramente diferentes sobre o mesmo tema do grande compositor barroco.”
Z. Loparic