BODY AND PSYCHO-SOMATICS IN WINNICOTT | PREFÁCIO POR ELSA OLIVEIRA DIAS

Este livro versa sobre uma das mais decisivas contribuições de D. W. Winnicott ao estudo da natureza humana e à psicanálise: a sua concepção de que a natureza humana é essencialmente psicossomática e de que essa coesão entre psique e soma não é dada, simplesmente, mas uma conquista do amadurecimento, dependendo, para sua realização, dos cuidados ambientais, sobretudo dos que são proporcionados ao bebê no começo da vida. O tema da existência psicossomática está como que entranhado em todo o pensamento do autor; sua psicanálise é encarnada, como bem diz a autora do presente livro, Vera Regina Ferraz de Laurentiis.
Tal como ocorre com outras tarefas fundamentais dos estágios primitivos do amadurecimento – a integração no tempo e no espaço, o início das relações objetais –, também as raízes da integração entre psique e soma (chamada por Winnicott de personalização) estão fincadas nas experiências primitivas que são proporcionadas ao bebê. Para o autor, tudo o que fica mais solidamente plantado nessa terra de origem torna-se mais bem estabelecido na personalidade e menos vulnerável às intempéries da vida. Ocorre o mesmo com a conquista da parceria psicossomática: de sua boa resolução ou fracasso, nesses tempos primitivos, dependem todas as conquistas subsequentes.
Visto da perspectiva winnicottiana, é imensa e quase inacreditável a multiplicidade das possibilidades e, por outro lado, dos impedimentos, que derivam das alternativas de o bebê ter tido ou não facilitadas, ao longo dos estágios iniciais, experiências constantes de coesão psicossomática que serão incorporadas como esquemas somáticos integrados ao si-mesmo, ou, contrariamente, de simplesmente não lhe ser dada essa experiência de tal modo que ele não adquire a capacidade de habitar no corpo como uma morada. O que resulta desta última alternativa é, como diz Winnicott, a “incerteza da morada”, ou seja, a despersonalização, uma vez que o indivíduo não sente a morada como algo garantido, mas, ao contrário, como algo que pode ser muitas vezes perdido.
É sobre todo esse imenso, complexo, variado e sutil horizonte que nos fala Vera Regina Ferraz de Laurentiis, acompanhando passo a passo Winnicott, seja nos largos corredores abertos por sua perspectiva, seja em cada vão de seu pensamento, e ao longo de todas as etapas do amadurecimento. Para se ter uma ideia da abrangência da questão, Winnicott chega a afirmar, no texto de 1966, “O transtorno psicossomático”, que “não existe área do desenvolvimento da personalidade que deixe de estar envolvida em um estudo do transtorno psicossomático”, o que significa que, seja qual for a problemática envolvida, a questão da interação essencial “entre a personalidade de um indivíduo e o corpo em que a pessoa vive” deve sempre ser considerada. O campo constituído por todos os fenômenos psicossomáticos, na saúde e na doença, é de tal modo vasto e complexo que, segundo Winnicott, “quando se tenta examinar as várias maneiras pelas quais o distúrbio psicossomático pode surgir, percebe-se que um enunciado desse transtorno não pode ser abrangido a não ser em um grande livro, redigido por uma equipe de autores”. Num texto de 1970, ele diz ainda que “a elucidação do problema geral [da psicossomática] está apenas começando”.
Embora a autora esteja ciente dessa amplitude, não foi com esse intuito enciclopédico que ela se dedicou a escrever este livro. Em  consonância com o que Winnicott afirma – que omaterial de pesquisa da psicanálise, tal como ele a concebe, “é essencialmente o ser humano sendo, sentindo, relacionando-se e contemplando” –, o que ela fez foi cuidadosamente coligir amostras de como a parceria psicossomática, ou sua ausência, apresentam-se nos diversos âmbitos do viver e do relacionar-se, em cada um dos estágios do amadurecimento, de modo a fornecer ao leitor uma visão geral da questão na perspectiva winnicottiana, gestada no bojo da leitura de Winnicott praticada na Escola Winnicottiana de São Paulo e entretecida de sua própria experiência clínica e pessoal.
O presente livro teve origem, como já se lê na Apresentação, na dissertação de mestrado de Vera de Laurentiis, defendida em 2008 com o título Aspectos somáticos da conquista do eu em D. W. Winnicott. Quando Vera chegou ao curso de pós-graduação da PUC-SP, em 2002, ainda como aluna ouvinte, ela já encontrou um grupo de pesquisadores reunidos em torno da linha de pesquisa sobre a psicanálise iniciada e dirigida por Zeljko Loparic, e aprimorada pelas contribuições de seus colaboradores: o Grupo de Pesquisa em Filosofia e Práticas Psicoterápicas (GrupoFPP), criado em 1995 na PUC-SP, e que está sediado atualmente na Unicamp. De início, a equipe de pesquisadores era composta pelos orientandos de Loparic; a partir de 2005, outros vieram juntar-se aos membros do GrupoFPP para formar a Sociedade Brasileira de Psicanálise Winnicottiana (SBPW), que se tornou, mais recentemente, Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana.
Já por ocasião da dissertação, o trabalho de pesquisa realizado por Vera de Laurentiis, embora mais restrito aos aspectos específicos que cercam a constituição do eu, revelou-se minucioso em detalhes e articulações conceituais, exemplos e ilustrações clínicas; para nossa sorte, contudo, ao decidir-se muito recentemente a publicar o manuscrito, Vera resolveu ampliar o escopo e temos agora esta exposição bastante abrangente, ao mesmo tempo precisa e personalizada, da perspectiva inovadora de Winnicott acerca dessa temática fundamental, a psicossomática.
Digo que a exposição é personalizada porque, apesar de tratar-se de um livro sobre Winnicott, de alta precisão conceitual, trata-se muito claramente de um livro escrito por Vera de Laurentiis: ela não quis que um estudo que abordasse o tema da psicossomática winnicottiana tivesse um tom excessivamente mental, que pareces- se dissonante do tema central ou que denunciasse de pronto a sua origem acadêmica.
Com isso, e pela extrema determinação em tornar claras as inumeráveis nuances com que Winnicott nos brinda ao descrever aspectos muito sutis do amadurecimento psicossomático, Vera adotou em sua escrita um estilo vivo e estritamente pessoal, e o manteve até o final de seu trabalho.
Também, pudera, temos aqui uma feliz conjunção: além de ser analista e estudiosa-pesquisadora extremamente dedicada, as questões relacionadas ao corpo foram-lhe sempre vitais, como ela mesma confessa em sua Apresentação, pois tal como o próprio Winnicott, também ela sempre adorou e cultivou a dança. O tema acha-se, portanto, em boas mãos, ou talvez se possa dizer, em bom colo, um que decide preservar o campo próprio em que o tema deve poder florescer. Tudo indica, ao se ler o texto, que o que Vera anseia, e consegue, é reter algo da delicadeza que perpassa o pensamento do autor quando, preocupado em não invadir ou iluminar em excesso o terreno sagrado do que é puramente pessoal, ele descreve aspectos da vida e das relações que pertencem à “magia da intimidade”.
O que o leitor tem em mãos é, portanto, uma preciosidade para os estudos winnicottianos e para o estudo da psicossomática. Vera esmerou-se em trazer à luz, e em juntar, quase em um bordado, as inúmeras menções de Winnicott, garimpadas às vezes em pequenas e quase imperceptíveis passagens de seus casos clínicos, para ilustrar as conquistas maturacionais que se sucedem, na saúde, ou não puderam se realizar, como no caso dos distúrbios em geral, ressaltando sempre o aspecto psicossomático dos fenômenos e as decorrências que nos chegam à clínica. Ela também não se furta a nenhuma das decorrências a que o tema impele: discorre sobre o que Winnicott chama de “verdadeiro distúrbio psicossomático” e, em seguida, fala das formas de tratamento por ele sugeridas.
Uma das qualidades a ser relevada, no livro, é que ele é o que promete ser. Vera persiste fielmente no tema a que se propôs: a inserção da psique no corpo, ao longo do amadurecimento, tecendo articulações que permitem ao leitor vislumbrar com nitidez os nexos que o complexo pensamento de Winnicott estabelece entre as experiências primitivas e certos impedimentos apresentados pelos pacientes, crianças mais velhas ou adultos.
No Capítulo V, por exemplo, Vera faz um recorte do modo como, para Winnicott, a experiência primitiva dos estados tranquilos e dos excitados se estabelece como um padrão, vindo a interferir seriamente nos relacionamentos futuros. No trecho que ora destaco, referindo-se mais especificamente aos estados tranquilos, ela diz:
Quando tudo corre bem, também há mutualidade e capacidade de comunicação sem palavras, e um bebê capaz de estar tranquilo na presença do outro ainda não diferenciado de si poderá, no futuro, estar com alguém de maneira não excitada ou mesmo estar só. Falhas nos contatos tranquilos perturbam a consolidação de todo um espectro de relacionamentos egoicos: a construção da possibilidade de intimidade e de um lugar para onde voltar quando não se está excitado. Vale ressaltar que parte da clínica winnnicottiana repousa justamente na construção desse lugar de intimidade. (p. 277)
Um outro exemplo dessa garimpagem de Vera na obra winnicottiana pode ser encontrado no Capítulo VII, item 2.1, denominado “Do espaço infinito ao espaço da intimidade”. Observa-se, através do trecho de Winnicott abaixo destacado, o nexo traçado pela autora:
Se tudo correr bem, chega-se ao final de um período especialmente delicado e começa-se a ouvir ruídos e gorgolejos. Isso quer dizer que se completou a digestão do leite […] os citados gorgolejos indicam ter chegado ao fim o período em que a criança é sensível, e o alimento está agora realmente dentro dela. Do ponto de vista do bebê, essa nova fase deve ser um mistério, dado que a fisiologia excede sua capacidade mental.
Vera comenta:
Essa passagem ilustra o que Winnicott chama “opacidade do corpo”: a fisiologia viva excede a capacidade de elaborar da criança e não se presta à apropriação completa. Poder-se-ia pensar que o alimento que se perde no interior e coloca o bebê diante do “mistério” dos processos fisiológicos talvez seja uma base experiencial, somática e primitiva do sentimento e da fantasia do que é “insondável” e “ilimitado”, que comumente se reveste o mundo interno/pessoal. (pp. 400-401)
Nesse ponto, a autora acresceu uma nota de rodapé que diz: “Embora as ideias de construção de um esquema corporal e de morada no soma sejam fundamentais na teoria winnicottiana, reitero que a morada não é clausura e que, na saúde, o espaço interno é aberto e ilimitado”.
Como se vê, Vera escolhe e aprofunda os pontos e temas que lhe parecem essenciais. É como pegar o leitor pela mão e caminhar com ele pelas veredas winnicottianas, mostrando-lhe pequenos detalhes, que fazem toda a diferença e que nem sempre podem ser vistos por olhos desavisados ou pouco familiarizados com a paisagem do novo paradigma que Winnicott nos oferece da natureza humana.
Elsa Oliveira Dias.
08 de setembro de 2021
Prefácio do livro Body and psycho-somatics in Winnicott, de Vera de Laurentiis, originalmente publicado no livro Corpo e Psicossomática em 2016 e  traduzido para o inglês nesta edição.

4 Comentários

  • por ANA REGINA LAMBERT Posted 12 de maio de 2022 4:41 pm

    Boa tarde,

    Gostaria muito de adquirir este livro, isto seria possível de alguma forma, considerando que está esgotado?

    • por instituto winnicott Posted 13 de maio de 2022 9:27 am

      Bom dia,
      Ficamos felizes pelo seu interesse! Vamos entrar em contato com você por e-mail.

  • por Adriana Koch dos Santos Posted 1 de junho de 2022 8:03 pm

    Boa noite
    Gostaria de adquirir este livro. Como faço?

    Obrigada

    • por instituto winnicott Posted 2 de junho de 2022 9:11 am

      Bom dia, Adriana!
      Como o site da Livraria Piggle está em manutenção, estamos fazendo as vendas diretamente por e-mail. Peço que entre em contato pelo endereço dwweditorial@sbpw.com.br para que possamos te passar mais informações e realizar o processo de compra e venda.

      Obrigada

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