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O bom lar comum

O tema da família é um tema extensivamente discutido e entra pela porta da frente toda vez que atendemos um paciente. Os meandros da dinâmica familiar e as particularidades da personalidade de seus membros são referências etiológicas substanciais para entender a condição emocional e o modo de ser do paciente. Nisto Winnicott nos deixa um legado detalhado e por isso é muito reconhecido. No entanto, opto por expor sua perspectiva mais generalizada no que se refere a contextualização da família na sociedade, seu papel e importância. Tomo a família, assim como Winnicott o fez, como a unidade pela qual a sociedade deve zelar, pois é dentro dela que é berçado aquele que virá a ser um cidadão. Os modos de ser e os modos de ser cidadão tem consequências diretas nos processos sociais, culturais, econômicos e políticos de uma nação. A sociedade é formada pelo somatório de seus indivíduos. É nestes indivíduos quando saudáveis que se apoia a saúde da nação, dita soberana em suas fronteiras e recursos, dita justa em seus valores, dita democrática por sua politica. No mais, não se pode deixar de lado a reflexão inversa. Se os indivíduos formam a sociedade, pelo composto de referências que ela oferece também são “formados”. A família é a ponta de lança da sociedade junto a criança. É ali que será vivido por meio das relações entre pais e filhos tanto o que é interno e particular dos limites intramuros familiar como será vivido o externo, ou seja, os ditames sociais do que é extramuros, mas que igualmente penetra no cotidiano. Por breve que seja o desenvolvimento desta argumentação, muito explica o foco de Winnicott sobre manifestar-se pela priorização e asseguramento das famílias, mais precisamente o bom lar comum. Seu ponto de vista é preventivo e se destina a refletir sobre os horizontes futuros de uma nação e, quiçá, da humanidade.
No período pós segundos guerra mundial, em 1945, foi a primeira vez que Winnicott citou e desenvolveu o que entendia ser o bom lar comum. Estivera muito envolvido quanto psiquiatra e pediatra no plano de evacuação das crianças de Londres sob fortes bombardeios, assim colaborando no que se tratava de salvá-las e garantir a continuidade do país. Este movimento continha um primeiro propósito óbvio: salvaguardar a integridade física das crianças. O outro propósito, mais afim de Winnicott, salvaguardar o quanto possível a integridade emocional destas crianças mesmo em meio a dura perda do lar. Durante a guerra, a extensão de seus cuidados alcançou também às mães. Em suas conversas radiofônicas transmitia compreensão e apoio ao sofrimento daquelas mulheres assombradas pelas dúvidas e fantasias potencializadas com o afastamento dos filhos. Agora, no entanto, no pós guerra, o momento era outro. Os filhos retornavam aos lares. A assombração dizia respeito a este retorno. Como seria a readaptação numa via de mão dupla, da criança ao lar, do lar à criança. Sempre antenado e comprometido com os acontecimentos contemporâneos de sua época, Winnicott mais uma vez dirige-se à sociedade. Por meio deste texto, seu gesto é de validação do que acredita ser a base primordial da saúde emocional individual, e em seu entender, por tabela, da coletiva: o bom lar comum.
Destacando os aspectos incluídos no termo, o bom lar comum, the ordinary good home, é comum. Comum é o mais recorrente, a maioria. Se estivéssemos examinando estatisticamente, algo pertencente a média e não aos desvios das exceções. Exceções estas que seriam o inverso, os lares ruins. Comum também por ser o lar construído por pessoas comuns e que se incumbem de seus filhos com responsabilidade exercendo um trabalho comum. Não há neon nem no quem são estes pais e nem no que fazem. Os pais não são celebridades e no que aqui se examina tampouco espera-se que este lar produza celebridades. Nada neste lar é espetacular nem seu valor rende notícia. Seu dia a dia é composto repetidamente por pequenas coisas e eventos cotidianos. Contudo, sobre ele é dito que é bom.
Primeiramente bom sobre o foco da negação da perfeição seguindo o provérbio de senso comum: “o ótimo é inimigo do bom”. Como se sabe, para Winnicott bom é equivalente ao suficiente. O que se encontra neste trabalho comum parental é a oferta não somente das coisas básicas de provisão, tais como teto, alimento, roupas mas também o ambiente emocional através do qual cuida-se dos filhos. A parentalidade engloba o exercício de compreensão e amor, mas também de força e firmeza. Sob estas bases que podem prover a continuidade de segurança real do lar ao filhos, pois a despeito do que demais instituições ou lares adotivos temporários possam prover, somente os pais podem aguentar o ódio do filho sem que potencializem-se sentimentos ameaçadores de rompimento no relacionamento. No mais, é da ordem da saúde no rumo do desenvolvimento emocional que as crianças testem a realidade do amor de seus pais e passem a desafiá-los. Este exercício também faz parte do processo de alcance da responsabilidade e autonomia pessoal. A contrapartida ambiental destes pais é continuar seu trabalho comum de se responsabilizar pelo desenvolvimento do filho, incluso nos momentos mais exasperadores.
Nada mais comum do que ouvir elogios ao comportamento educado do próprio filho vindo da parte dos vizinhos e amigos, e, por dentro, se perguntar: “da onde vem isto?”, uma vez que em casa o filho é um “pestinha”. É desta possibilidade de ser mais livre em casa, mais solto do que em qualquer outro lugar, poder brincar, que a criança manifesta sua tranquilidade. A criança encontra no lar, um pequeno mundo, um primeiro campo de atividades modulado em seu tamanho. Os limites deste mundo vão se expandindo à medida de seu crescimento e alcance maturacional. Pode adiante ir e vir, explorar o mundo pois tem para onde voltar. Por definição, para Winnicott, o lar é uma realidade de cuidado com o qual as crianças contam. Fora deste lar, ou mesmo num lar ruim, a criança precisa instaurar por si mesma, medidas de autocontrole em substituição aos pais ausentes ou diante de falhas ambientais significativas. Através deste artifício, por vezes em modos rigorosos ou excessivos, a criança auto sustenta uma orientação disciplinar para manter-se segura ou no caminho certo.
Assim, o retorno ao lar em 1945 restaurava a continuidade de voltar para os pais, a própria casa e seus brinquedos. Emocionalmente, mais adiante nesta readaptação, significou dar férias a este autocontrole rigoroso instaurado na ruptura, pois os pais agora podiam reassumir este controle. Na medida de cada caso, retomar o direito a irresponsabilidade de ser criança envolveu em casos mais leves virar um pestinha de tempos em tempos. Em casos mais graves, na mesma medida reivindicações mais graves. Mais importante, como assinala Winnicott, é que este movimento da criança é de restauração, de retomada do processo maturacional, movido pela esperança por encontrar-se novamente no conhecido e consistente lar.
Tendo isto como base geral para o entendimento da situação, a pretensão de Winnicott ultrapassa dar apenas ênfase as qualidades do lar, mas com isto substanciar a autonomia das famílias em dar conta dos seus próprios problemas, uma vez possuindo atributos para isto. Apenas em caso de restarem perdidos numa situação mais séria é que os pais necessitariam de ajuda profissional no cuidado ao filho.
Fato é que a autonomia do bom lar comum era um foco de preocupação de Winnicott, como sua carta ao editor do Times em 1950 comprova. Em seu modo enfático, Winnicott manifestava-se contrário ao que tornava-se um padrão na época: as intrusões de profissionais da saúde e agentes sociais que cheios de boa vontade e boas pretensões creditavam-se autoridades mais competentes na solução de algumas situações que nem mesmo entendiam direito qual eram. O risco de desequilibrar a dinâmica familiar através de intervenções desnecessárias comprometia a instituição do bom lar comum, e consequentemente, todo o potencial maturacional ali em pleno desenvolvimento.
Do que observava acontecendo com as famílias, Winnicott apontou duas interferências principais. A primeira dizia respeito aos especialistas. Estes eram profissionais em várias áreas da saúde que tomavam para si endireitar o que estava torto instrumentalizados pelo saber da ciência. Decepcionava-se com as proposições médicas que eram eminentemente objetivas, sem respeito a casuística e dando ênfase em diagnósticos por origem física. Nos dias de hoje esta ênfase recrudesceu tendo como braço a neurociências do cérebro e a psiquiatria da química. Na época os pediatras e psicólogos produziam manuais a serem seguidos. Criar manuais continua na moda até nos nossos dias. Mas agora ainda somam-se as colaborações instrutivas das inúmeras produções nas redes sociais. Seja como for, ontem e hoje, a interferência constitui-se no tabular o que é certo e errado em como fazer na criação dos filhos vis a vis a resultados de sucesso. Além destes critérios de sucesso serem questionáveis, o saber dos pais permanece totalmente invalidado.
Ao que parece, no centro de todo o problema a difícil distinção entre o que era regra e o que era exceção, ou seja, o bom lar comum e o lar ruim. Formados pela precariedade emocional e relacional dos pais estes lares são dito ruins por não favorecer um bom desenvolvimento maturacional aos filhos. Nele gera-se toda sorte de distorção na personalidade de uma criança, e, por tabela, uma série de problemas sociais. Assim que ainda na continuidade, Winnicott aponta uma segunda onda de intrusão, esta proveniente das políticas oficiais em resposta aos apelos de parte da sociedade mobilizadas pelos problemas emergentes em lares ruins. A falta de distinção entre o joio e o trigo, neste caso, transformava a exceção em regra. No mais das vezes, dizia Winnicott, esta mobilização era capitaneada pelo sentimentalismo, uma espécie de piedade fácil sem base alguma do que ocorria. As caraterísticas patológicas acabaram ganhando território em detrimento dos lares saudáveis comuns. Nominamos isto hoje de patologização.
Winnicott alertava aos perigos da sociedade orientar seus projetos públicos em apoio aos lares ruins, portanto em direção a estas caraterísticas patológicas, afetando deste modo a orientação aos bons lares comuns. Outrora prerrogativa das religiões, a moralização versava sobre legalidade de matrimônio e dos filhos. Nesta esfera o comum das interferências recaía sobre mães solteiras ou divorciadas. Agora a moralização alcança níveis muito mais elevados e integrados institucionalmente quer seja no templo das ciências ou da educação. Uma espécie de moralização fácil sobre o trabalho dos pais, como ilustrada por uma paciente minha de 6 anos. No caso, ela me contava uma travessura feita com uma amiga na escola. Quando “pega em flagrante” pela professora, me disse que os pais levaram uma multa. Quando perguntei por que, ela respondeu: Ué, porque não me educaram bem!
Sobre isto Winnicott poderia ser descrito como um visionário. Apesar de suas manifestações contrárias, o que observara lá atrás acabou recrudescendo. Anunciara o quanto seria desastroso a ampliação das interferências pela militância sentimentalista de modo a deixar os pais com medo de serem naturais. O que mais vemos hoje, incluso no consultório, são pais assustados, melhor dizendo, paranoides, sem saber o que fazer, pois tudo em sua conduta e nas circunstâncias difíceis lhes foi vendido como tão complicado, tão destruidor que encontram-se desnorteados. A bússola própria suplantada pela da cultura patologizante. Esta cultura que, no mais, se beneficia deste medo. Mas para Winnicott, os bons pais comuns não precisam de ajuda, mas sim necessitam de uma ciência que cuide da saúde física de modo pontual e preventivo. Se necessitarem de assistência em caso de adoecimento psicológico, isto não pode ser feito sem perder de vista sua participação. Deste ponto que se entende o porque em seus casos clínicos Winnicott incluía a avaliação das condições ambientais e em muitas vezes chega a acolher os pais. Disto dependia o diagnóstico, o manejo e o prognóstico.
Ainda em 1950, Winnicott reforça o papel do bom lar comum fazendo uma reflexão sobre sua importância para a democracia uma vez sendo este o locus responsáveis pelo alcance da maturidade do indivíduo ali criado. Em sua ideia o regime democrático resulta como modo político instaurado e assegurado pela maturidade da maior parte dos indivíduos de uma nação. Tem-se então, democracia é maturidade, maturidade é saúde emocional, e o bom lar comum é o favorecedor desta saúde. Afirma assim como este bom lar comum é criador do fator democrático inato. O fomento deste fator é um motivo a mais para este lar ser protegido de intrusões desnecessárias. O indivíduo saudável tem a capacidade de agir politicamente mediado pelo próprio mundo interno ambivalente que promove o balanço dos pesos e contrapesos na escolha dos candidatos. No inverso, o problema dos lares instáveis e não confiáveis é a geração de indivíduos adoecidos e imaturos, antissociais entre outros, cujas escolhas políticas são enviesadas por necessidades emocionais. Assim que apoiam e se identificam com ditadores ou líderes antissociais no poder.
Neste percurso espera-se ter deixado claro o quanto a ética do cuidado proposta por Winnicott não restringia-se somente ao setting, ao indivíduo, mas também num posicionamento em estendê-la para a família, o bom lar comum. E assim, para a sociedade. Este pensamento, pelo meu ponto de vista, continua oferecendo uma referência a partir da qual podemos entender e refletir sobre as questões da contemporaneidade.
Danit Pondé 
05 de julho de 2021
Fala de abertura da live: “Família” transmitida no youtube
pelo canal WINNICOTT URGENTE, no dia 19 de junho de 2021.
Clique aqui para assistir

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