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IDENTIFICAÇÃO CRUZADA

O conceito de identificação cruzada foi criado por Winnicott, que assim o define: “Um sinal de saúde na mente é a habilidade de um indivíduo de entrar imaginativamente e, ainda assim, acuradamente, nos pensamentos, sentimentos, esperanças e medos de uma outra pessoa; também de permitir que a outra pessoa faça a mesma coisa para nós.”
Num outro texto, ao falar sobre essa habilidade – conquistada ao longo do processo de amadurecimento –, ele nos diz: “Por meio das identificações cruzadas, a linha distinta entre eu e não-eu fica borrada”.
Entretanto, é preciso entender corretamente o que significa esse “ficar borrada”. Significa que, na identificação cruzada, eu me coloco dentro do outro e o outro se coloca dentro de mim, por meio dos processos de projeção e introjeção, conforme Winnicott salienta. Desta forma, eu me identifico om o outro e o outro se identifica comigo. Entretanto, eu me ponho dentro do outro sem me perder de mim mesmo; o outro se põe dentro de mim sem se perder de si mesmo. Ou seja, a identificação cruzada implica o paradoxo de estar em mim e no outro, ao mesmo tempo, identificado ao outro, mas continuando sobre os meus próprios pés.
Essa habilidade é conquistada ao longo do processo de amadurecimento da criança e ela é possibilitada por aquilo que Winnicott chamou de terceira zona ou espaço potencial. Este se forma por meio dos fenômenos transicionais, quando a mãe é substituída – durante espaços de tempo — por certos objetos: fralda, ursinho de pelúcia etc., os assim chamados objetos transicionais, que são aqueles que operam a transição do bebê do mundo subjetivo para o mundo objetivo e que abrem a psique infantil para os processos de simbolização. A terceira zona constitui, pois, esse espaço que é uma sobreposição entre mundo subjetivo e mundo objetivo, entre fantasia e realidade. É ela, pois, que permite esse paradoxo de poder estar em mim (na realidade) e no outro (na imaginação) ao mesmo tempo.
Existem pessoas que não têm essa capacidade de identificação cruzada e que, geralmente, são pessoas que sofreram grandes privações ou traumas ambientais no início da vida, entre elas os psicóticos e o sociopatas/psicopatas (duas nosologias que, parcialmente, se recobrem uma à outra). Sociopatas burlam e desconsideram quaisquer regras de convívio social; psicopatas reificam o outro e o tratam como objetos do seu puro prazer. 
Os psicóticos (entre eles incluídos os pacientes de tipo borderline) são aqueles que sofreram um tipo de privação no estágio de dependência absoluta ou relativa e, consequentemente, não chegaram a distinguir o eu do não-eu, tendendo a fundir-se ao ambiente. Para eles, o “outro” não existe como alteridade, mas como um prolongamento de si próprios, portanto, o que se produz, na relação com o outro, é uma confusão de identidades e não uma identificação cruzada (que pressupõe uma distinção eu/não-eu). 
Os sociopatas/psicopatas descrevem aqueles que sofreram deprivação* quando já distinguiam mundo interno de mundo externo e, em função disso, formaram uma tendência antissocial, produzindo atos antissociais como, ao mesmo tempo, um pedido de socorro e uma cobrança do ambiente daquilo que sentem que o ambiente lhes deve. Uma tendência antissocial não tratada a tempo acaba propiciando ganhos secundários que, geralmente, levam à delinquência. A delinquência contumaz pode chegar ao extremo de transformar o indivíduo num sociopata/psicopata, para quem o outro deixa de existir como um semelhante a ser respeitado. O garimpeiro que invade a terra indígena, poluindo os rios e assassinando chefes tribais descreve bem esse tipo.
A capacidade de identificação cruzada constitui, entretanto, a etapa mais importante do processo de amadurecimento pessoal, pois é ela que permite, a cada um de nós, a possiblidade de se transformar num cidadão do mundo, para, além das distinções de raça, nacionalidade, gênero, religião etc. Nesse sentido, posso me identificar com o índio e sentir o seu sofrimento, por ver as suas terras invadidas, as matas queimadas e os rios poluídos. Posso, também, me identificar com os afrodescendentes e sentir o seu sofrimento pela discriminação de cor; com os homossexuais e os transgêneros, pelo preconceito e pelas agressões sofridas; com os fugitivos de guerra e perceber o quanto necessitam de acolhimento e segurança num país alheio. Ou com animais maltratados, sentindo o quanto necessitam da proteção humana. E assim por diante.
Nesse sentido, a identificação cruzada é condição de um sistema democrático, já que a democracia pressupõe o convívio e o respeito entre diferentes e a capacidade de elaborar os conflitos que surgem dessa relação.
* Winnicott usa dois termos diferentes para falar dos dois tipos de privação, a dos primeiros tempos e a do segundo tempo (quando eu e não-eu já estão distintos). São eles: privation e deprivation; para traduzir esse segundo termo e distingui-lo do primeiro, Zeljko Loparic propôs o neologismo “deprivação”. 
Alfredo Naffah Neto
22 de setembro de 2021
Fala de abertura da live: “Identificação cruzada” transmitida no youtube
pelo canal WINNICOTT URGENTE, no dia 21 de agosto de 2021.
Clique aqui para assistir

1 Comentário

  • por Beatriz Yamada Posted 30 de junho de 2023 3:47 am

    Amei o texto. Muito esclarecedor.
    Parece um ingrediente em falta para termos uma sociedade melhor.

    Obrigada,
    Beatriz Yamada

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