Na clínica com velhos – indivíduos que estão na fase da velhice – percebi que “falar com” alguém era mais importante do que o que se fala, ou seja, para se fazer a elaboração da vivência da velhice precisava se ter uma pessoa de carne e osso e psique para “testemunhar” o percurso desse velho. Esse alguém participava com sua presença, seu olhar e toque terno. Entretanto, a referência teórica que eu utilizava era a da psicanálise tradicional freudiana que não me dava uma resposta para explicar uma razão para esse fenômeno: um dos motivos era que Freud contraindicava a psicanálise para os idosos – pessoas acima de 50 anos (sendo que a expectativa média de vida em 1900 era de 45 anos), em razão da falta de plasticidade psíquica e exaustão da receptividade e ainda por uma quantidade de material excessiva e pouco tempo de elaboração em análise. Essa proposição de Freud, no entanto, não correspondia a minha clínica com os velhos. Diferentemente de Freud que trazia em sua teoria uma tradição vinda de Charcot que faz os primeiros estudos técnicos-científicos sobre a velhice e associa a velhice normal com doença.
Como, então, responder às minhas indagações? Aqui entra a contribuição de Winnicott e a sua psicanálise. Na época, eu tinha algum estudo sobre conceitos winnicottianos, principalmente sobre o psiquismo materno, que eu utilizava na clínica mãe-bebê. Mas, esses conceitos eram usados por mim de forma isolada do conjunto de sua teoria. O ponto de revirada na minha compreensão sobre a clínica com os velhos e a necessidade imprescindível da presença de alguém que os escutasse foram elucidadas quando conheci o Prof. Loparic que me indicou, já de início, o caminho oferecido por Winnicott e isso veio por uma chamada de atenção de que não se tratava de um “testemunho”, mas da presença real, pessoal e confiável em uma relação do velho com um alguém que incluía a mutualidade.
Winnicott vai trazer a velhice não somente como uma fase da vida normal, mas também como um tempo de amadurecimento pessoal. Na direção contrária ao declínio corporal típico do processo de envelhecimento há o desenvolvimento emocional e, talvez, o seu auge em comparação às etapas anteriores da vida.
Como é caracterizado esse amadurecimento? Inicialmente pela elaboração imaginativa das funções como declínio corporal – somático – na psique; em seguida a integração no tempo e no espaço através da recriação da história vivida como experiência que inclui em seu desfecho a finitude. Por fim, a integração da “de-integração” da continuidade do self em direção à morte e conquistar a capacidade para morrer. Essas tarefas compõem o amadurecimento emocional na última fase da vida. Segundo Loparic, o movimento é circular em direção ao início, da dependência do outro-ambiente, o que justifica a minha hipótese da necessidade de uma pessoa para estar junto, nesse processo, difícil, mas necessário.
Este percurso de transformar a vivência da velhice em uma experiência emocional da vida pode acontecer tanto na vida comum, como na clínica psicanalítica. Eu denominei essa clínica, evidentemente baseada na psicanálise de Winnicott, de clínica do “holding”, do suporte, do cuidado de alguém que se dirige ao velho como um ambiente facilitador da tendência inata ao amadurecimento. Esta clínica se assemelha, segundo indicação do prof. Loparic, à clínica dos cuidados paliativos: em última análise, trata-se de se preparar para a morte (a segunda morte), para os desligamentos das relações e da própria vida. Essa jornada ocorre, no espaço da clínica, por meio da regressão à dependência normal, porque ela é típica da fase da vida em questão.
E quem é esta pessoa que faz o holding, que propicia a sustentação ambiental para que a tendência do amadurecimento, nesse caso, da integração da “de-integração” do self? É uma pessoa, – um cuidador ou um psicanalista – que possua a capacidade sofisticada de identificação cruzada, isto é, alguém que se identifique com o velho e permita que esse se identifique ao cuidador/psicanalista. É uma relação de empatia mútua. Essa capacidade de mutualidade pode ser realizada porque esse alguém-ambiente foi cuidado pela mãe, quando ele mesmo era bebê. É preciso ressaltar que na identificação cruzada fica preservada a separação entre o cuidador/psicanalista e o paciente.
Para finalizar, proponho que o esclarecimento das condições ambientais para que aconteça o amadurecimento pessoal na última fase da vida – a velhice – pode contribuir, como clínica do holding, com as práticas assistenciais dos profissionais especializados nos cuidados dos velhos.
Flávia Maria de Paula Soares
28 de setembro de 2021
Fala de abertura da live: “O envelhecimento e a capacidade para morrer” transmitida no youtube
pelo canal WINNICOTT URGENTE, no dia 5 de junho de 2021.
Clique aqui para assistir
3 Comentários
Ola. Sou psicóloga/psicanalista e docento do Itipoa.
Este ano darei o seminário de Desenvolvimento III onde abordaremos o tema da velhice.
Tu poderias disponibilizar teu artigo para mim?
Desde já agradeço
Olá, Beatriz!
O texto acima faz parte a fala de Flávia durante uma live no canal Winnicott Urgente. A live completa pode ser acessada através do link a seguir:
https://www.youtube.com/watch?v=Ax9GY7-R9l4
Obrigada! Eu assisti a live, mas pensei que poderia ter um texto.