Não sou uma conhecedora profunda do pensamento de Winnicott, mas suas ideias certamente fazem parte do que eu costumo chamar do meu sangue psicanalítico, nutrindo a minha clínica. Winnicott também me ajudou a integrar as minhas atividades artísticas, ou melhor, o meu brincar com a Arte, com o “ser psicanalista”, já que ele coloca a criatividade como central para o sentir-se real e vivo num mundo vivo. O estudo dos processos criativos também me ajuda a um olhar para a clínica que procura valorizar os aspectos saudáveis, os recursos e a forma singular como cada indivíduo se organiza para lidar com as difíceis tarefas que a vida propõe.
Num primeiro momento, ao pensar nos termos propostos para essa conversa faço associações baseadas no senso comum. Penso no medo e na angústia como presenças constantes do acontecer humano, (desde os primórdios de uma nascente consciência de estar vivo). O medo costuma estar associado a algo substantivo; tenho medo de alguma coisa, já a angústia costuma ser mais difusa, uma experiencia de algo que invade, mas nem sempre associado a algo definido. A paranoia, assim como as fobias já aludem a um estado adoecido, quando os medos e angústias se cristalizam em defesas paralisantes e mais rígidas, que interferem na espontaneidade e no vir a ser do indivíduo humano. Qualquer um de nós está sujeito a viver estados paranoides associados a momentos de ameaça. Tanto o medo, como a angústia e os estados paranoides, geralmente estão associados a algum sintoma físico, lembrando a natureza psicossomática do acontecer humano. Então, estamos dentro de um tema que nos une e que não é nada difícil encontrar em nós mesmos as experiências que estamos propondo conversar.
Associo também de imediato à situação atual de pandemia que nos coloca frente a uma quebra da confiabilidade do mundo.
A realidade nos coloca frente ao medo de adoecer, o medo de morrer interferindo na forma usual em que se estabelecem nossos contatos, com nossos amigos, parentes. O acontecer humano na sua espontaneidade é totalmente inibido pelo medo do contágio, impedindo o toque, o carinho, o abraço. O Outro aparece como perigoso e precisamos explicar as crianças que não podem mais abraçar seus avós, seus amiguinhos e grandes restrições ao movimentar-se livremente são impostas. Cuidados de assepsia e higiene se impõem. Rituais que poderiam pertencer ao campo do adoecimento psíquico, aos quadros obsessivos e paranoides são naturalizados, como parte do cotidiano comum.
Confiabilidade é um dos pressupostos básicos colocados por Winnicott. É a constância de um mundo que permanece inalterado que garante o “sendo”. No processo de amadurecimento saudável o mundo é apresentado em pequenas doses, na exata medida em que o bebê pode assimilar sem ser invadido por ameaças constantes que possam interromper a sua existência. Acontecimentos bruscos como a pandemia que interferem na ordem natural das coisas colocando em questão a estabilidade do ambiente, nos colocam frente à experiencias que nos remetem às agonias impensáveis abalando as estruturas mais básicas do self. Ao invés de pequenas doses, temos o impacto traumático da mudança que chega sem aviso prévio. Um self menos coeso e integrado, fatalmente será lançado nos terrores e inseguranças associados aos momentos iniciais de vida, ao período de dependência absoluta, que caracteriza os inícios da vida humana.
No início, as primeiras experiencias são vividas no corpo. A confiabilidade se dá por um ambiente que tem constância e previsibilidade nos cuidados. Os braços maternos têm firmeza e previnem que o bebê viva a experiência da força da gravidade, que seria a queda sem fim. As experiencias corporais originais são a base para as futuras inseguranças.
Grandes catástrofes e a pandemia é uma entre tantas, como ataques terroristas ou grandes acontecimentos climáticos como terremotos, tsunamis etc. vão nos desafiar com novas e inusitadas demandas de encontrar estabilidade na turbulência.
Num livro que reúne textos de Winnicott, cujo nome bastante sugestivo é “Tudo começa em casa”, podemos acompanhar o seu pensamento e como suas reflexões partem do que seria um lar saudável e caminham em direção ao mais amplo, às questões sociais e aos sistemas de governo. Uma sociedade amadurecida necessita de um maior número de indivíduos que alcançaram o amadurecimento pessoal. Winnicott se refere às pessoas que ocupam posição de autoridade e que tem uma estruturação de personalidade com características paranoides. São pessoas que não toleram a dúvida, que tem um pensamento rígido e estereotipado e com o impulso criativo inibido. As dúvidas geram inquietação e predomina a crença em uma verdade absoluta.
Importância dos governantes, que no nível social, deveriam prover a estabilidade do manejo da situação que garantisse um mínimo de confiabilidade num momento tão difícil e ameaçador.
Uma forma de lidar com a angústia e o medo é alimentar espaços de liberdade para garantir o movimento que alimenta a vida saudável. O que não é possível prescindir é do contato consigo mesmo, da possiblidade de expressão. Quando a angústia impera e os estados restritivos se acentuam, o convívio consigo mesmo e com os outros pode ganhar características repetitivas e viciantes. Por exemplo, assistir o noticiário o dia inteiro. Ou jogar jogos eletrônicos, comer demais, beber demais, dormir demais. Ou ainda falta de apetite, insônia…
O mundo virtual se apresenta como espaço potencial onde trocas criativas podem se dar. O virtual é o lugar de encontro. Aqui introduzo o tema que me é mais caro, o dos processos criativos, que penso serem fundamentais para possibilitar criar espaços de transicionalidade, espaços potenciais que nos devolvem a potência necessária para sustentar o insustentável.
“Descobri que posso viver sem restaurantes, lojas, avião ou carro. E confirmei que não viveria sem música, filmes e livros. A linha tênue entre enlouquecer ou se manter são está na arte. Por isso, cultura é um direito humano de primeira necessidade.” (frase que circulou na internet durante a pandemia)
Mirian Malzyner
17 de junho de 2021
Fala de abertura da live: “Angústia, medo e paranoia” transmitida no youtube
pelo canal WINNICOTT URGENTE, no dia 10 de abril de 2021.