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A psicanálise de Winnicott enquanto clareira (Lichtung) para o filosofar

Começamos nossa apresentação trazendo uma questão que, certamente, poderá ter sido formulada pelo leitor, qual seja: qual a relação de Winnicott com a Filosofia? Essa é uma questão pertinente já que o legado da psicanálise winnicottiana nos oferece construções importantes no campo da clínica, da abordagem das patologias do amadurecimento, do brincar e da cultura, mas não é um legado com um vigoroso debate com determinados filósofos. Os poetas são mais citados que aqueles que se dedicam ao filosofar, o que torna pertinente a questão sobre a relação entre Winnicott e a Filosofia. Esta é uma relação que, por não ser explicitamente estabelecida, nos leva a investigar em que medida poderíamos pensar em uma potência filosófica da psicanálise de Winnicott, ou, em que medida uma via de mão-dupla pode ser estabelecida entre a sua teoria do amadurecimento e a seara filosófica. Alguns filósofos como Deleuze e Axel Honneth já mencionaram Winnicott e a importância de sua psicanálise. No caso deste último, até fazendo um certo uso operativo desta. No entanto, entendemos que essa coletânea instaura caminhos diferentes, cuja meta consiste em indicar que a teoria winnicottiana tem a potência de criar uma clareira teórica capaz de acolher questões de natureza filosófica, capaz de instigar aqueles que lidam com a filosofia a pensar a condição humana considerando as conquistas do amadurecimento, bem como as suas falhas.
O sentido do termo clareira é aqui tomado emprestado de Martin Heidegger, tal como apresentado em sua obra O Fim da Filosofia e Tarefa do Pensamento. Nesta obra, o filósofo nos fornece uma imagem que julgamos ser profícua para esclarecer a maneira como pensamos os caminhos da relação entre Winnicott e a Filosofia apresentados pelos autores deste livro. Heidegger se refere à relação entre a clareira (Lichtung) e a luz (Licht) com o intuito de meditar sobre a relação entre pensamento e razão. Anuncia que o termo clareira (Lichtung) define uma região desbravada de uma densa floresta, liberta de árvores, a qual é condição de possibilidade para que a luz incida e ilumine o lugar. O autor nos faz entender o termo clareira (Lichtung) enquanto abertura de pensamento e o termo Licht como uma metáfora da luz da razão que pode vir a incidir no aberto.
Apesar de Heidegger estar debatendo, no texto em comento, a relação entre pensamento – enquanto clareira – e a luz da razão e nos indicando que Lichtung não provém da luz, ao contrário, que toda a luz da razão pressupõe o espaço livre para poder se difundir, achamos que podemos usar essa imagem para falar do tema desta coletânea. E que forma? Entendendo que a psicanálise winnicottiana abre uma clareira para pensarmos questões de natureza filosófica, mais que isso, entendendo que esta psicanálise abre um rico horizonte para pensarmos sobre a capacidade humana de se envolver com os dilemas filosóficos. Expliquemos: ao tratar de um bebê que ainda não amadureceu, nem conquistou a capacidade de sentir-se real e dar sentido à realidade, Winnicott aborda um momento do acontecer humano que é prévio e condição de possibilidade, para a amadurecida habilidade de formular questões de natureza filosófica. E ainda, tal psicanálise, ao pensar o amadurecer do neonato, nos faz ver que este está diante de tarefas que trazem consigo, mesmo que de modo não mentalmente formulado, questões ligadas ao terreno filosófico, ao campo dos termos ser, existir e fazer. Em função disso, podemos pegar emprestado a imagem formulada por Heidegger e dizer que a psicanálise de Winnicott abre uma clareira (Lichtung) na qual é possível incidir frutíferas questões de natureza filosófica.
Enquanto organizadores desta coletânea, compreendemos que os autores apresentam aqui não apenas interfaces da psicanálise de Winnicott com determinadas correntes filosóficas, mas, sobretudo, a potência filosófica da sua psicanálise. De diferentes modos, nos desvelam clareiras abertas pelo psicanalista inglês capazes de acolher a incidência da luz de questões filosóficas relativas à realidade, à imanência, à linguagem, ao corpo, ao mundo, à identidade, ao nosso modo de relação com os fenômenos.
Cumpre dizer que, no Brasil, o primeiro filósofo que percebeu os ganhos em desenvolver o que há de filosófico na psicanálise de Winnicott foi Zeljko Loparic em seu artigo “Winnicott e Heidegger: primeiras aproximações” de 1994. Esse artigo que teve força seminal foi publicado em inglês, em 1999, na revista Natureza Humana, justamente para chamar a atenção da comunidade internacional para a relevância das potencialidades do pensamento winnicottiano não só para os desenvolvimentos da própria psicanálise, como para o debate com a fenomenologia e demais correntes filosóficas. Desde então, muitos trabalhos de sua autoria se seguiram, bem como de pesquisadores, seus ex-orientandos, e de colegas no Brasil e no exterior. Alguns desdobramentos das pesquisas ligadas ao campo de diálogo da Filosofia com a Psicanálise de Winnicott podem ser lidos nos capítulos apresentados neste livro.
O capítulo de Irene Borges-Duarte dá ênfase a uma das questões filosóficas mais importantes e ainda pouco explorada em Winnicott, a saber, o caráter primordial do relacional. Sua contribuição é feita via olhar de André Green, contemporâneo de Winnicott, que também percebera a centralidade de certos conceitos em sua obra. Green considera o livro Natureza humana de Winnicott um “escrito transicional” que lhe permitiu fazer invenções conceituais instrumentais que vão além do que fora legado por Freud. Três vetores exemplificariam bem tais invenções: o estabelecimento de relação com a realidade, a integração do self como unidade, a partir do estado de não-integração e o alojamento da psique no corpo. Borges-Duarte destaca que a “natureza humana”, apesar de seu nome tão clássico, filosoficamente ligado a concepções essencialistas do ser humano, que tendem a considerá-lo de um ponto de vista substancialista, adjudicando-lhe uma forma de ser fixa, imutável, predeterminada, revela-se em Winnicott como uma designação evolutiva, que não só não pressupõe o domínio da “natureza” em sentido biológico, à maneira freudiana, e da interioridade individual, como acentua fundamentalmente o papel do entorno ambiental, considerando primário o caráter relacional dessa “natureza”. Borges-Duarte, usando da perspectiva de Green, reconhece não só a importância, mas também as mudanças que Winnicott promove em relação a outros psicanalistas. Porém, da mesma forma que Green, prefere pensar nessas mudanças de forma moderada sem assumir que entre a psicanálise tradicional e a psicanálise de Winnicott há uma mudança de paradigmas no sentido que Zeljko Loparic já apontara em diversas de suas contribuições.
Como essa coletânea traz a marca de uma pluralidade no olhar sobre a relação entre a Psicanálise de Winnicott e a Filosofia, o capítulo de Elsa Oliveira Dias vai numa direção mais incisiva do que a de Irene Borges-Duarte, posto que advoga – a partir de uma minuciosa análise da semântica winnicottiana – que esta psicanálise realiza uma ruptura paradigmática. Em O vocabulário da revolução winnicottiana, Dias se propõe o desafio de mostrar aquilo que parecer ser o mais difícil, seja para profissionais da psicanálise, seja para os estudiosos da obra de Winnicott perceberem que é a mudança de uma linguagem abstrata e metapsicológica para uma descritiva e de caráter experiencial. A autora adota, como mencionado, a abordagem lopariciana da mudança de paradigmas na psicanálise e nos permite perceber as mudanças que a psicanálise de Winnicott provocou. No entanto, ela mesmo nota que a radicalidade e originalidade da contribuição winnicottiana, no mais das vezes, se desfaz numa certa cultura, política talvez, das sociedades psicanalíticas, que faz parecer que todas as premissas se reduzem às obras matrizes de Freud e Melanie Klein. A autora está convencida – assim como alguns outros autores que publicam nesta edição – que os fenômenos do adoecer precoce por parte de alguns bebês abriu para Winnicott todo um novo campo de pesquisa que, consequentemente, produziu anomalias, no sentido considerado por Thomas Kuhn, que a teoria da psicanálise tradicional não conseguia resolver. Um dos resultados em se ter um aumento de anomalias dentro de uma determinada matriz disciplinar – pense-se aqui na psicanálise tradicional – é que ela força os conceitos operativos desta matriz contra os limites explicativos da linguagem com que se opera ali dentro. Por consequência, Winnicott para poder lidar com novos problemas precisou expandir esse vocabulário, usando uma outra linguagem. O leitor deve se atentar para que a ideia de amadurecimento é sempre o pano de fundo das descrições de um dado fenômeno, num certo estágio, podendo não mais valer de um estágio para outro. E, assim, o vocabulário diz respeito ao que é específico de cada estágio.
Em É dizível o inconsciente? Zeljko Loparic executa uma discussão sobre a maneira como Freud pensa o conceito de inconsciente e sobre o pressuposto de sua verbalização, o qual fundamenta a clínica freudiana. Ao questionar o imperativo de verbalizar tudo, Loparic demonstra como filósofos contemporâneos, em diferentes perspectivas, pensam a linguagem e o lugar do não-verbalizável. A partir do exame da regra fundamental da psicanálise freudiana, o autor indica os limites teóricos e clínicos da pressuposição de que todos os conteúdos inconscientes podem ser vertidos em algo dizível e nos apresenta uma leitura das formulações winnicottianas relativas a um tipo de conteúdo inconsciente que não pode ser verbalizado de acordo com a prática da associação livre e, por conseguinte, não é passível de ser elaborado à luz do clássico modelo de interpretação analítica. Mediante uma densa investigação do legado winnicottiano, Loparic nos faz ver que Winnicott apresenta uma formulação de um inconsciente agônico, não-comunicável verbalmente e cujo acesso não é via interpretação. O autor apresenta diferença entre o conceito winnicottiano de inconsciente não-acontecido e conceito metapsicológico de inconsciente reprimido e aponta de que modo a teoria winnicottiana da comunicação primária não paga tributo ao imperativo de dizibilidade típico da psicanálise de Freud. No capítulo em comento, Loparic analisa o modelo de comunicação não-verbal entre o paciente psicótico e o analista, tomando como base o conceito de inconsciente não-acontecido, nos indicando que a consideração deste modelo implica em um redimensionamento do lugar da interpretação e da verbalização no tratamento psicanalítico.
Caroline Vasconcelos Ribeiro, no capítulo intitulado A desconstrução do sentido unívoco de realidade: afinidades possíveis entre Heidegger e Winnicott, defende que tanto o filósofo, quanto o psicanalista questionam o sentido unívoco de realidade legado da tradição moderna, qual seja, o de algo percebido objetivamente. Para a autora, ainda que um formule a questão no nível ontológico e o outro num nível ôntico, ambos desconstroem a ideia de que o acesso à realidade é operado exclusivamente pelos recursos cognitivos e mentais. Heidegger entende que a realidade se doa ao Dasein, primordialmente, de modo não-objetal, ou seja, que seus modos originários de doação não são acessíveis via representação. Winnicott, aponta Ribeiro, além de indicar outros sentidos de realidade para além do objetivamente percebido, nos faz ver que a relação com esta não é algo previamente garantido, mas se configura como aquisições conquistadas ao longo do amadurecimento humano. Após apresentar um exame acerca do modo como o Dasein lida com a realidade que se abre na lida cotidiana e do modo como o bebê percorre uma jornada de amadurecimento até conquistar o sentimento de real e a relação com a realidade objetivamente percebida, a autora analisa afinidades e diferenças entre a psicanálise de Winnicott e a filosofia de Heidegger.
Philippe Cabestan trabalha em seu capítulo com dois conceitos muito importantes na obra de Winnicott: verdadeiro si-mesmo e falso si-mesmo. Em se tratando de um conceito de difícil apreensão, seu recorte toma apoio primeiro na elaboração da fenomenologia heideggeriana e, em seguida, da sartriana, dos conceitos de si-mesmo, de autenticidade e de inautenticidade. Cabestan ressalta que em Heidegger, o Dasein – ser humano – não é um ser, no sentido de um ego substancial, mas um si-mesmo, um ser cujo modo de ser é irredutível àquele de um objeto subsistente e que pode “escolher” a si mesmo, se ganhar ou mesmo se perder. Sendo assim, a autenticidade pode ser considerada como uma maneira possível de existir, e se o Dasein pode ser si mesmo no modo da autenticidade, ele o pode ser igualmente no modo privativo da fuga e da inautenticidade. Sartre contribui nesta mesma linha quando insiste sobre a impossibilidade para o existente de ser isto que ele é. A partir desses pressupostos estabelecidos, Cabestan vai procurar mostrar que é possível retomar e aprofundar fenomenologicamente a concepção winnicottiana de verdadeiro e falso si-mesmo. O leitor certamente se verá frente a uma proposta de leitura instigante que o fará levantar várias questões.
Embora Eder Soares Santos também tome Heidegger como referência para a elaboração do seu capítulo, ele fará um uso diferente do filósofo alemão quando comparado ao texto de Cabestan. O capítulo em questão se intitula A ontologia original de Winnicott: a questão de ser. A intenção de Santos é a de mostrar que a partir de Winnicott é possível se desdobrar questões filosóficas de grande profundidade na psicanálise winnicottiana, como uma ontologia, uma teoria do conhecimento, uma ética, uma teoria do jogo. No que concerne à ontologia, tema sobre o qual se concentra o capítulo, a psicanálise de Winnicott se deixa ler como um estudo da questão de ser. A questão de ser parece apontar para a preocupação principal de Heidegger em Ser e tempo, a saber: a questão do ser. Apesar de soar parecido, são questões diferentes. A questão do ser questiona pelo sentido do ser e a questão de ser questiona como um indivíduo chega-a-ser para poder ser capaz de colocar a questão pelo seu sentido (seja este sentido filosófico, religioso, emocional, espiritual etc.). Trata-se, para Santos, de realizar um jogo de aproximação e distanciamento entre Winnicott e Heidegger, no qual a teoria do amadurecimento de Winnicott pode revelar uma ontologia própria, original, que, por vezes, vai ao encontro das discussões propostas por Heidegger em Ser e Tempo, e, por outras, sugere novos ângulos para uma investigação fenomenológica instigadas a partir da psicanálise de Winnicott.
Em seu capítulo, Alfredo Naffah Neto apresenta como horizonte dialógico com a psicanálise de Winnicott a ontologia selvagem de Maurice Merleau-Ponty e defende a ideia de que a noção de carne (chair) pode dar suporte ontológico para a noção winnicottiana de mãe suficientemente boa. Após examinar as duas noções em seu texto, Naffah Neto as articula considerando os níveis ôntico e ontológico. Para tanto, nos faz ver de que maneira, na obra do filósofo francês, a noção de corpo cedeu o lugar de conceito-mor para a noção mais originária de carne (chair). Esta, por não se identificar com qualquer forma de matéria, refere-se a uma participação originária do eu e do mundo, num sistema reversível de ver-ser visto, de tocar-ser tocado. Ao articular essa filosofia com a concretude da vida ôntica, Naffah Neto argumenta que a noção de carne pode ser uma referência ontológica para o conceito de mãe suficientemente boa, com o qual Winnicott aborda os cuidados físicos e emocionais dispensados ao bebê e que são capazes de lhe proporcionar a integração gradativa do self, sem qualquer processo de alienação. Para o autor, acontece com os cuidados maternais essa mesma reversibilidade, uma vez que a sensibilidade do bebê se ancora no ser da mãe sem se perder de si própria, ao passo em que a sensibilidade da mãe se dirige ao ser do bebê sem, contudo, perder a sua identidade. O argumento defendido pelo autor aponta que do mesmo modo que a ontologia merleau-pontyana, com a noção de chair, pode referendar a psicanálise winnicottiana, esta ontologia também pode ser também referendada por esta psicanálise a partir do exame das trocas que se estabelecem entre a mãe suficientemente boa e seu bebê.
Carlos Motta e Suzi Piza indicam, no capítulo intitulado Sobre a identidade pessoal em D. Hume e D. W. Winnicott, que é possível detectar uma forte presença de teorias filosóficas na psicanálise de Winnicott, especialmente teorias de filósofos modernos e contemporâneos. Ainda que Winnicott não cite explicitamente expoentes da História da Filosofia e até mesmo não tematize formalmente conceitos filosóficos, suas ideias sobre a natureza humana trazem consigo uma força filosófica. Para os autores, isso pode ser constatado, por exemplo, em sua abordagem sobre a noção de continuidade de ser e de constituição de um si-mesmo pessoal. Motta e Piza apontam que um conceito central da psicanálise de Winnicott, o de natureza humana, também é alvo de investigação do filósofo David Hume, cujo Tratado da natureza humana nos apresenta uma teoria empirista da identidade pessoal. O exercício dialógico deste capítulo consiste em apresentar, a partir do pensamento de Hume, uma espécie de “fundamento filosófico” para a teoria de Winnicott da tendência humana à integração em um eu sou. Os autores realizam um exame sobre a maneira como temas abordados por Hume aparecem no horizonte da psicanálise de Winnicott. Motta e Piza indicam que é possível constatar em Hume a presença de problemas e perguntas que foram tratadas e respondidas por Winnicott posteriormente, o que torna o diálogo frutífero para se pensar a relação do humano com o mundo.
À primeira vista o capítulo intitulado “A grande identidade Spinoza-Winnicott: ou a força vital da imanência”, de André Martins, poderia causar um estranhamento ou soar anacrônico. Pois parece querer aproximar dois autores muito distintos de períodos históricos-filosóficos muito distintos. Mas, a surpresa reside justamente neste ponto, o capítulo revela que assim como entre Spinoza e Nietzsche há um mesmo interesse em não querer corrigir o real, mas o de compreendê-lo em sua potência e criatividade; também em Winnicott se vê uma procura por descrever a realidade do psiquismo humano, sua afetividade, sua natureza e a potência humana de vida, de maneira imanente num sentido que vai ao encontro do que também preconizava Spinoza. O texto destaca com precisão alguns destes pontos de contato entre os dois autores: o que se percebe como sendo a mente e o psiquismo, e sua união com o corpo, tornando compreensível a gênese do pensamento nos afetos e no corpo, revelando de forma inequívoca que não se trata de duas substâncias; elucidação da força vital, que em Spinoza é a potência da vida e sua expressão individual como conatus; tanto Winnicott quanto Spinoza pensam o quanto uma vida falsa é aquela vivida como reação aos estímulos ambientais sentidos como invasivos, fazendo com que o self do indivíduo se constitua muito mais para dar conta das exigências ambientais, sociais, como defesa a agressões, invasões, imposições, do que por sua própria potência. Além disso, Martins ainda trata da afirmação da imanência que desencadeia um amor à vida, ao real, à natureza como substância única, a base mais forte da teoria e da terapêutica tanto winnicottiana como spinozista.
Em Sobre a natureza humana e o mundo: entre a filosofia e a psicanálise, Suzi Piza nos apresenta um diálogo entre a filosofia de Hannah Arendt e a psicanálise winnicottiana. Piza evidencia que, na obra A condição humana, Arendt indica que os seres humanos, não obstante sua natureza sempre mutante, podem alcançar a constância, a estabilidade e garantir sua identidade desde que se garanta que o mundo permaneça. Do ponto de vista ontológico, mundo é concebido como espaço da aparência, no qual falamos e agimos uns com os outros, no qual podemos ser relacionais. Ainda que este mundo seja cheio de erros e semblâncias, Piza argumenta que a realidade é garantida por uma comunhão de fatores, tais como, nossos cinco sentidos, o compartilhamento da realidade por aqueles que têm em comum o contexto que doa a cada objeto o seu significado específico, a habilidade de pensar e a de retirar-se do mundo sem o transcender. A partir de uma reflexão sobre a fenomenologia do aparecer humano, a autora examina a maneira como Arendt articula os conceitos de aparência, pensamento e mal banal. Em diálogo com a psicanálise de Winnicott, Piza problematiza o uso do termo natureza humana – que pode ser entendido na perspectiva meramente objetiva ou a-histórica – ao invés de “condição humana” e, ao fazer isso, nos esclarece que a maneira como este psicanalista dá sentido a este termo não fere a compreensão histórica e pessoal, posto que, para ele, o humano é o ente que acontece no tempo (uma amostra no tempo da natureza humana), mobilizado por uma tendência inata para a integração pessoal que só se realiza na relação com um ambiente humano facilitador. Ao enfatizar esse caráter acontecencial da concepção de natureza humana, Piza indica de que forma alguns caminhos teóricos da psicanálise de Winnicott encontram guarida na filosofia de Hannah Arendt.
Voltando à questão levantada no começo desse texto de apresentação, supomos que o leitor poderá entender melhor este encontro que sugerimos aqui entre Winnicott e a Filosofia, se tiver em mente que, além de um exercício de expor teses comparativas entre a psicanálise winnicottiana e as filosofias e os filósofos, essa coletânea propõe que possamos nos aproximar da potência filosófica desta psicanálise. Mais que isso, que possamos entendê-la como uma clareira que abre uma seara geradora e catalizadora de questionamentos de natureza filosófica, em outros termos, como uma clareira que se abre para que se incida o exercício de filosofar. Convidamos o leitor a explorar as sendas abertas por esta clareira, expostas nesta coletânea de diferentes formas, a partir da abordagem de distintos aspectos da teoria winnicottiana. Esperamos que seja um percurso bem proveitoso.
Caroline Vasconcelos Ribeiro e Eder Soares Santos
13 de dezembro de 2021.
Texto de apresentação do livro digital Winnicott e a Filosofia, organizado por Caroline Vasconcelos Ribeiro e Eder Soares Santos, com textos de Irene Borges-Duarte, Elsa Oliveira Dias, Zeljko Loparic, Caroline Vasconcelos Ribeiro, Philippe Cabestan, Eder Soares Santos, Alfredo Naffah Neto, Carlos Motta, Suzi Piza e André Martins, lançado em 16 de dezembro de 2021.

1 Comentário

  • por Yvette Piha lrhman Posted 16 de dezembro de 2021 10:43 am

    Resenha muito cuidadosa apresentou a contribuição de cada autor e deu uma visão da importância do livro
    Foi bom também entrar em contato com cada autor
    Parabens

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