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A CRIATIVIDADE E O BRINCAR

O tema de hoje é um tema especialmente caro para mim. Como eu disse na outra Live, não sou uma profunda conhecedora do pensamento de Winnicott, no sentido acadêmico, mas os conceitos da teoria por ele desenvolvida fazem parte do meu olhar clínico.  Estudar os processos criativos também ajudou a integrar a minha brincadeira com atividades artísticas e a Psicanálise. 

Para Winnicott ser criativo é o mesmo que ser vivo. Ser e criar são indissociáveis. Tem uma frase do poeta Manoel de Barros, que com a precisão inerente à linguagem poética diz assim: “Tudo que não invento é falso”. Para que o mundo tenha realidade é preciso que eu possa inventá-lo, criá-lo. Ser real em um mundo real implica nessa possibilidade de criar o mundo a sua própria maneira. A base para que seja assim está nas primeiras relações do bebê com sua mãe. É ela que vai apresentar o mundo ao bebê, se apresentar e apresentar o bebê para ele mesmo. Um processo delicado que envolve uma coreografia em que o tempo do bebê precisa ser respeitado. O mundo é apresentado em doses homeopáticas na exata medida da necessidade do bebê, respeitando seu tempo e respondendo ao gesto que procura, que busca, o que Winnicott chamou de gesto espontâneo. Esse encontro do objeto de necessidade ocorre como numa mágica, alimentando a necessária experiência de onipotência na área de Ilusão. A área de Ilusão é fundante portanto do Ser, da capacidade de criar o mundo, que de fato, já está ali para ser encontrado/criado. É o paradoxo. 

Então, paradoxalmente, o mundo objetivo é alcançado dependendo de uma subjetividade bem constituída. Aqui eu quero explicitar como esses conceitos se inserem no meu olhar clínico. Percebo meu olhar interessado em acompanhar o que o meu paciente busca, mais do que apontar do que ele foge. Ao invés de acentuar os mecanismos de defesa, procuro as origens da relação com o real e procuro também propiciar uma experiencia em que, respeitando a singularidade seja possível retomar o gesto espontâneo. A maneira própria e única como cada indivíduo se organiza para lidar com as questões que surgem na vida é foco da minha atenção.

Marion Milner, psicanalista que foi amiga de Winnicott e que compartilhava muito das suas ideias, principalmente no que diz respeito a importância da área de Ilusão, tem uma expressão que no meu entender é bastante feliz que é “a parte maleável da realidade”. A experiência proporcionada por uma análise deve incluir essa parte maleável da realidade, onde contornos rígidos entre o eu e o outro são abolidos e o analista acolhe e vai sendo moldado/criado pelas necessidades do paciente. Ela traz um exemplo de um atendimento de um menino que brincava com fogo nas sessões. Numa sessão ele joga soldadinhos de chumbo no fogo que derretem. Milner não interpreta isso como destrutividade, mas sim como necessidade de dissolver contornos muito rígidos. 

A área de Ilusão é o lugar da criatividade que se renova ao longo da vida e se traduz no espaço potencial, na transicionalidade. É o lugar do descanso, do potencial imaginativo, onde é possível suspender o julgamento que separa o interno do externo, a realidade da fantasia. É o lugar da brincadeira e que evolui na vida adulta para todas as atividades do campo da cultura, das artes em geral. 

Importante lembrar que a criatividade que estamos falando não necessariamente envolve qualquer talento artístico. Ela está presente no viver do ser humano comum, desde que ele experimente o “fazer a sua própria maneira”. 

Para as crianças o brincar é uma atividade séria e comprometida. A brincadeira é o lugar da experimentação, do uso criativo da imaginação. Como disse antes, a área de Ilusão é renovada ao longo da vida. Ela é perdida e recuperada, portanto, instável. Na observação de crianças brincando, podemos ver como é comum uma brincadeira “acabar mal”. Algo interfere no jogo livre imaginativo e pode trazer sofrimento. A magia do brincar se interrompe e a realidade invade. Na situação analítica, por vezes uma palavra pode gerar essa quebra na fluidez da conversa causando impactos disruptivos. Uma palavra que para aquela pessoa em especial tem repercussões que remetem a grandes desastres. 

 Usando mais uma vez a palavra poética, essa precariedade está clara nos versos da Música Circo Místico, letra de Chico Buarque:

“Não, não sei se é um truque banal, se um invisível cordão sustenta a vida real”

Encerro minha fala com esses versos, na tentativa de trazer esse aspecto da precariedade que está envolvido no processo de construção da subjetividade que nunca se encerra. É o vir a ser humano e suas vicissitudes.

São Paulo, 31 de julho de 2021

Mirian Malzyner
11 de agosto de 2021
Fala de abertura da live: “A criatividade e o brincar” transmitida no youtube
pelo canal WINNICOTT URGENTE, no dia 07 de agosto de 2021.
Clique aqui para assistir

2 Comentários

  • por Nathalia Posted 12 de agosto de 2021 7:13 pm

    Que beleza de texto-ensaio acerca da importância do brincar na infância na formação da própria criança e lá adiante do adulto sadio e criativo.
    Parabéns para a sua autora! Sou fã da teoria winnicottiana! Em que pese que minha formação profissional é noutra area de atuação (Direito) a meu sentir o estrago é sempre lá atrás!

  • por ANA CRISTINA MARZOLLA Posted 27 de julho de 2023 2:21 pm

    Miriam, somos vizinhas de consultório. Estudo muito Winnicott e adorei seu texto.

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