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125 anos do nascimento de Winnicott

Celebramos hoje, com muita alegria, o aniversário de Donald Wood Winnicott, que estaria completando 125 anos se estivesse vivo. Como já dito anteriormente, a melhor homenagem que se pode prestar a um cientista e pensador é por de manifesto e em ação o seu legado. O legado de Winnicott é o seu trabalho de extraordinária originalidade e e seu pedido pela continuação da revolução a que ele deu início. 
O legado de Winnicott não se limita à psicanálise, embora tenha se tornado particularmente conhecido no âmbito dessa disciplina; sua contribuição se estende a todo os campos da saúde, e, na verdade, a todas as áreas que estejam direta ou indiretamente relacionadas e empenhadas no desenvolvimento – físico, emocional, intelectual – de crianças, adolescentes e mesmo adultos. Para além da nova e extraordinária perspectiva clínica aberta por ele, seu pensamento alcança questões mais amplas da existência humana. 
Num texto sobre Donald Winnicott, escrito por sua viúva Clare, encontra-se a seguinte apreciação: 
Consideradas sua personalidade, sua formação e sua experiência, bem como sua premência à descoberta, parece inevitável que concentrasse suas pesquisas na área até então relativamente inexplorada da primeiríssima infância e da infância propriamente dita. Suas descobertas, contudo, são reconhecidas por muitos como possuindo implicações que vão muito além da área imediata de estudo, e é opinião expressa de alguns que elas lançam luz sobre todas as áreas do viver. (Clare Winnicott, 1978, Explorações Psicanalíticas, p. 2).
Essa é uma das qualidades do trabalho de Winnicott, que nós, do Instituto Brasileiro de Psicanálise Winnicottiana, temos salientado: a amplitude que seu pensamento atinge em termos de áreas da saúde e de práticas clínicas sociais/institucionais, as quais podem ser utilmente orientadas e ajudadas por sua nova e revolucionária perspectiva, tanto na compreensão como no tratamento de casos dos mais simples aos mais severos e complexos. 
Logo após o falecimento de Winnicott faleceu, em 25 de janeiro de 1971, nas vésperas de o seu livro O Brincar e a realidade sai à luz, o International Journal of Psycho-Analysis publicou, na seção de Obituários, o tributo que lhe prestou, entre outros, Masud Khan, considerado seu único discípulo psicanalista. Masud Khan inicia do seguinte modo a sua homenagem a Winnicott:
O Dr. Donald Winnicott morreu, repentinamente em sua casa, na segunda feira, 25 de janeiro, com a idade de 74 anos. Com a sua morte, a tradição viva de uma dedicação clínica, sustentada por um único homem, ao longo de 50 anos, para o cuidado e a facilitação de crianças e adultos, na direção da saúde psíquica e da maturidade, transformaram-se em um rico legado, e em responsabilidade para seus colegas e colaboradores.
Dr. Winnicott começou sua longa epopeia psicoterapêutica em 1923, como um médico assistente no Paddington Green Children’s Hospital, onde ele trabalhou 40 anos. Foi nesse setting de intenso envolvimento pediátrico com crianças e mãe que ele moldou sua especifica sensibilidade terapêutica. […] Gradualmente, ao longo de décadas, o impacto de suas pesquisas permeou todas as disciplinas afins, desde a pediatria e a psicanálise até a assistência social e a educação. Ele foi um verdadeiro revolucionário sem um programa evangélico dogmático” (Khan, 1971, p. 225).
Desta citação, faço notar não apenas a menção à amplitude e alcance da clínica winnicottiana –  as várias áreas que em seu trabalho conviveram e se interfertilizaram –, mas igualmente o fato de que a responsabilidade a que Khan se refere tem a ver conosco, profissionais dedicados ao trabalho terapêutico na área de saúde psíquica. 
Winnicott deixou-nos um legado, sim, que é uma riqueza inestimável: uma teoria unitária da natureza humana baseada não na noção de forças psíquicas em conflito dentro de um sistema fechado, concepção essa emprestada por Freud à física, mas em aspectos fundamentais e universais do ser humano; por exemplo, a ideia de que cada ser humano herda uma tendência inata ao amadurecimento, isto é, à progressiva integração numa personalidade unificada, num eu. Essa tendência, apesar de inata, depende fundamentalmente,  para realizar-se a contento, de um fator imponderável: o modo como o ambiente responde, ou não, às necessidades básicas que o indivíduo apresenta, desde o início e ao longo da vida, nas várias etapas do seu amadurecimento. Ou seja, na contra corrente das principais posições psicanalíticas da sua época que enfatizavam o intrapsíquico, Winnicott assinalou a importância crucial do ambiente, em especial nas fases iniciais, em que a dependência é absoluta.
Na formulação de sua teoria sobre os processos maturacionais, em especial no que se refere aos estágios mais primitivos em que estão sendo lançadas as bases da personalidade, Winnicott é guiado pela questão de saber quais são as necessidades básicas do indivíduo que herda uma tendência ao amadurecimento. Ele observa e pesquisa, em especial, quais são as condições ambientais que favorecem, ou falham em favorecer, a tendência pela qual um bebê, inicialmente imaturo e altamente dependente, chega a tornar-se uma pessoa viável, isto é, capaz de estabelecer relações com a realidade externa, (aceitar o fato da separação eu/não-eu) sem perder o fio que o liga ao mundo subjetivo; capaz de achar algum sentido no fato de estar vivo e de poder, mesmo que só razoavelmente, gerir a própria vida. 
A concepção de saúde, entendida como continuidade do amadurecimento devido à resolução satisfatória das diferentes  tarefas que se sucedem na linha da vida, permitiu a Winnicott conceber o distúrbio como interrupção desse processo, por falta de facilitação ambiental. A natureza dos distúrbios varia segundo o momento maturacional em que a dificuldade se estabeleceu e isso fornece ao terapeuta ou profissional engajado, seja  na cura, seja na prevenção, um mapeamento da etiologia de cada distúrbio. A classificação dos distúrbios é primariamente maturacional e apenas secundariamente sintomatológica.
Formulada nesses termos, a psicopatologia winnicottiana traz uma contribuição fundamental para a clínica psicanalítica, orientando o diagnóstico e dando um norte para o terapeuta, que precisa estar ciente da idade emocional em que o paciente se encontra, seja para dar-se conta da imaturidade ali exposta, seja para acompanhar o paciente nas diferentes etapas do seu amadurecimento, incluindo fases de grande dependência. Esse horizonte favorece em especial o tratamento dos casos chamados difíceis, que não podiam ser abrangidos pela psicanálise tradicional. Mas não apenas; essa teoria permite, ainda, repensar procedimentos terapêuticos em vários outros campos da saúde – a pediatria, a psiquiatria infantil, a fonoaudiologia, a enfermagem, a terapia ocupacional, – assim como orientar o que compete à assistência social e à educação em termos de cuidados que favorecem o amadurecimento. Traz também, e muito especialmente, uma preciosa contribuição a todos os que se envolvem em políticas de prevenção. 
Ao se dedicar ao estudo dos estágios mais primitivos do amadurecimento, Winnicott tornou-se um mestre nos detalhes, nos pormenores das relações iniciais; ele iluminou, por exemplo, a comunicação silenciosa – ou, como ele diz, a “magia da intimidade” – que se desenvolve entre o bebê e a mãe suficientemente boa, a qual é capaz de empatia. Essa comunicação primitiva, ainda sem palavras, segundo ele,  é a base de todas as futuras formas de comunicação que venham a se desenvolver ao longo da vida. 
 O que Winnicott apreendeu no exercício paralelo das clínicas pediátrica e psicanalítica com adultos psicóticos foi essencial para a formulação de sua teoria e para o desenvolvimento de todos os aspectos clínicos do ele chamou de psicanálise modificada, isto é, especialmente adaptada ao tratamento de casos graves, assim como do trabalho clínico sui generis, as chamadas Consultas Terapêuticas.
Com respeito à sua habilidade em comunicar-se com as crianças, J. P. M. Tizard, um pediatra que trabalhou com Winnicott no Paddington Green Children’s Hospital e foi seu discípulo, escreveu no obituário que foi dedicado a Winnicott, em seguida à sua morte, em janeiro de 1971. Tizard escreve: 
Conheci Donald Winnicott há 22 anos atrás, quando me tornei um médico do Paddington Green Children’s Hospital. Eu fui para lá com a pobre bagagem da geralmente inútil psiquiatria infantil, mas eu logo entendi que, qualquer que fosse a dificuldade ou o dano das circunstâncias do passado e do presente de uma criança, a situação seria mudada para melhor caso o Dr. Winnicott estivesse envolvido. No início, eu atribuí isto à sua obviamente alta inteligência, aos seus poderes intuitivos e ao fato de que ele era “bom com crianças”; contudo, embora todas essas atribuições fossem corretas, eu percebi mais tarde – e eu estou certo de que ele gostaria que eu dissesse isso – que seu sucesso se devia em alto grau à sua disciplina profissional e ao seu treino como psicanalista.  Donald Winnicott tinha o mais surpreendente poder com crianças. Contudo, dizer que ele entendia as crianças me soa falso e vagamente condescendente; era mais que as crianças o entendiam e que ele era uma entre elas. (Int. J. Psycho-Anal. 1971, 52, 225).
Mais do que entender as crianças, Winnicott se fazia entender por elas. Ou seja, ele falava na linguagem delas; ele se comunicava com elas. Creio que se pode dizer que, na verdade, toda a obra winnicottiana é um exercício de comunicação, já de princípio, em suas palestras com as diferentes plateias que o escutavam. O fato é que, com  Winnicott a questão da possibilidade de comunicação é central em seus estudos sobre a natureza humana: não só a capacidade para a comunicação, desde a mais primitiva, orientada naturalmente pela capacidade de identificação com o outro, é a habilidade maior da mãe/ ambiente suficientemente bom, como a impossibilidade da comunicação, para um indivíduo, é a mais geral e pungente das agonias impensáveis.
Elsa Oliveira Dias
07 de abril de 2021

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